sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Unidos pela sede

Por anos as guerras aconteceram muito longe da casa da família Pássaro. Por conta da tradição militar muitos deixaram seu país natal (Brasil) para combater onde quer que o chamado do sangue surgisse. Histórias mostravam atuações dos filhos daquela casa em conflitos desde a primeira guerra mundial e sempre saindo com menções de honra, de forma que o nome Pássaro foi elevado às mais altas patentes. O único problema causado por tamanha determinação em guerrear era o desfalque familiar: mulheres viúvas com pouco tempo de casamento, maridos sem esposa por ferimentos letais, e muitos pais chorando a morte de seus filhos e herdeiros.
            Quando chegou o período das Guerras por petróleo, era a vez de Gustavo partir para o campo de batalha: estava determinado a seguir os passos de cada um de seus antepassados e assim embarcou para o Oriente Médio, com o único desejo de fazer a diferença. E, em meios aos conflitos por aquele óleo que tinha se tornado indispensável para gerar a energia que movia o mundo, ele viu morrer mulheres, crianças, soldados, homens inocentes e nem tanto assim. Suas próprias mãos não ficaram livres do espesso líquido vermelho que escorria não só de seus inimigos, mas também de seus companheiros feridos em conflitos.
            Após diversos anos naquela batalha travada sem conhecer a fundo o inimigo, Gustavo chegou à mais alta posição já ocupada por um membro de sua família, todavia ao em vez de sair para comemorar este preferiu tomar o turno da noite e respirar um pouco do fresco ar noturno. Em uma de suas voltas, porém, ele foi surpreendido por um par de olhos que o observavam da escuridão. Com o susto, seus instintos colocaram-se em alerta. De um salto sacou a arma e imobilizou a criatura a sua frente. Mas não contava que os olhos eram de uma criança que repetia em sussurros: “água, água, água”. Transtornado pela visão da inocência infantil transfigurada pela sede ele tomou a pequena figura nos braços e levou para dentro do alojamento. Depois de receber os cuidados necessários o menino, batizado Zafir, explicou sua situação: sua família foi morta injustamente por soldados e ele conseguiu escapar, mas não para longe o suficiente.
            Foi então que Gustavo compreendeu os estragos que aquele conflito trazia para a terra já árida do Oriente e resolveu ir embora. Mas não sem antes tornar Zafir um membro da família Pássaro e com ele narrar a história da busca pelo líquido negro e suas consequências: pobreza, tristeza, fome, sede... Esses relatos tornaram-se um livro, publicado tão logo a chegada em solo brasileiro.
            E os séculos se passaram. Aos poucos o militarismo ficou apenas na memória daquela família, que se voltara para diversas áreas depois do incidente de Gustavo, mas sem nunca perder o prestígio no que quer que fizessem. A história da criança adotada na Guerra e como um gole de água foi capaz de mudar tudo era constantemente lembrada em jantares de família. Era quase um elo que unia a todos os presentes. Até que algo estranho aconteceu e a família voltou para os campos de batalha.
            Uma carta chegou lacrada com um selo vermelho, e endereçava-se a Lúcia, a jovem médica que carregava, no momento, as honras da família: ela era convocada para ajudar aos exilados que chegavam ao Brasil. Mas de onde eles vinham? Por que precisavam de tanto auxílio? As respostas apareceram assim que os elegantes saltos da doutora chegaram ao alojamento: peles secas e a avidez com que cada gole de água era tomado ela pode perceber que a medonha profecia feita por seu antepassado tornara-se real: a guerra da água começava, e não tinha previsão de fim.
            E assim a família Pássaro voltou à guerra, dessa vez em sua própria nação, defendendo o líquido que uma vez tinha sido sinal de paz entre eles, e agora tingia-se do sangue derramado.

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