domingo, 3 de maio de 2015

Lanterna dos Finados

Com o fim do Império Romano do Ocidente, a Igreja Católica foi a única instituição a resistir ao colapso, tornando-se um farol na vida dos perdidos marujos da Idade Média. Entretanto, apesar de prometer uma vida após a morte, não era exatamente boazinha: sentenciava os pecadores, sem dó e nem piedade, a arder no mármore do inferno.
Brincando com o medo da travessia para a vida eterna, Gil Vicente escreve, de forma brilhante e fluida, O auto da barca do inferno. Peça teatral que tem por figuras centrais duas barcas: uma comandada pelo anjo e outra pelo demônio e que tem por destino, respectivamente, o paraíso e o inferno. Pelo cais do purgatório passam: um fidalgo, um onzeneiro, um parvo, um sapateiro, um frade, uma alcoviteira, um judeu, um corregedor, um procurador, um enforcado e quatro cavaleiros. Todos tentam sua passagem para o paraíso, entretanto os pesos acumulados em vida nem sempre tem lugar na frágil barca da bem-aventurança.
Seguindo o mesmo estilo de Farsa de Inês Pereira, Gil Vicente busca os chamados personagens-tipo: cada alma penada que passa pelo cais representa, não alguém em particular, e sim um vício (algo condenável) ou uma virtude (algo louvável). Dessa maneira, o autor buscava educar pelo riso, provocando situações irônicas e satíricas, mas, acima de tudo, cômicas. Entretanto, se na Farsa busca um teatro cômico focando no amor cortês, no Auto da barca busca um teatro cômico voltado para a crítica a moral da sociedade.
Um texto atemporal. Creio que é a melhor definição para dar a tal peça. Se Gil Vicente buscava por meio desta chamar atenção ao desacato a moral feito pelos europeus no século XVI, pode ser chamado de adivinho, pois encaixa-se também no período de descaso que vivemos hoje em dia.

Ou então, não era ele o profeta e sim a sociedade que, apesar de gostar de dizer que saiu da “Idade das Trevas”, não livrou-se de suas alegorias.